A COR DA PALAVRA DELICADEZA
Vânia Barbosa chegou na minha gira através dos meus parceiros Sérgio Gonçalves e Edson Thebaldi. Era uma noite tumultuada, o teatro tinha estado lotado, eu tinha gravado o dia inteiro, estava exausta. Era mais que fadiga, eu era um ser-veículo cujo combustível estava no fim da reserva. Como anjos da guarda, Sérgio e Edson resolveram me trazer em casa. Eu vim no banco de trás com Vânia, a quem eu acabara de ser apresentada: “Essa é uma amiga nossa Elisa, uma grande artista plástica mineira e a gente queria que você autografasse esse livro seu, A Fúria da Beleza, para ela”. Quase psicografante escrevi: “Com as mãos vamos construindo nossos barros, nossos bairros, nossas vidas.” A próxima cena, numa sequencia imediata, era eu entregando o livro autografado para ela e pedindo, com a inocência de uma criança, uma coisa absurda para quem ainda não se conhecia: “Posso deitar a cabeça no seu colo?” E ela disse: “Claro! Para mim é uma honra.” Ali dormi como um anjo sem forças.
Voltei a ver a Vânia dois meses depois. A essa altura ela já tinha desenvolvido a minha dedicatória sobre as mãos. Meu livro já era um intimo conhecido dela. Todo marcado, lido, usado, anotado, experienciado, vasculhado, vivido em sua alma e transformado em arte. Na arte dela, porque a arte da Vânia é arte só da Vânia. Não parece com a de ninguém. Pelo menos eu não conheço nada parecido. O que a gente vê na obra dessa mulher é um feminino flagrante que se comunica muito bem com todos os gêneros. O jeito como ela usa o termo poético na tela faz a gente estar diante de uma página-paisagem. A experiência de ver um quadro desses amplia o nosso entendimento e nos causa um espanto muito bom. Na textura que ela alcança com sua decidida mão, as palavras alcançam sua dimensão de nuvem, seu extrato etéreo e mágico. E com o auxilio plástico das cores e relevos “vanianos” a pintura atinge sua dimensão de fala, sua exatidão de palavra. O casamento é experimental e elegante ao mesmo tempo.
Esse negócio de ficar impondo sentidos nas artes plásticas é muito chato e perigoso. É possível que vocês não concordem comigo e que essa minha visão seja só minha e não sirva para mais ninguém. Então, devo deixar bem claro que escrevo aqui o que a arte de Vânia me convoca escrever. É matéria de meu pensamento, fruto do impacto delicioso de sua obra diante do meu olhar. Quando vi o quadro “Ele”, por exemplo, cujo poema é de meu ventre, antes de saber o nome do quadro, antes de entender que palavras estavam escritas ali, eu vi o outono transcrito, pintado, engrandecido e traduzido na obra de Vânia Barbosa. Parecia que ela melhorava meu poema. O que eu acho que a Vânia faz é uma intervenção poética e delicada na natureza das tintas, das telas, da superfície, da borracha, e os transforma em outra natureza. É uma dinâmica entre naturezas. Por isso tudo combina tanto, por isso tudo é tão harmônico, por isso dá vontade de ter uma obra dela em casa. Na embocadura de sua pegada, encontramos um cheiro de barro, vemos o trabalho silencioso e eloquente daquelas mãos. Vânia Barbosa é uma artista moderna que dá um jeito de nos recontar a nossa história para nós, e de nos devolver a delicadeza do rústico. A mesma delicadeza primitiva, melódica e generosa com que me ofereceu o colo como amparo ao meu sono naquela noite primeira sem me conhecer.
Elisa Lucinda | Primavera, 2006
Poetisa, jornalista, escritora, cantora e atriz.