
Quando a superfície de uma pintura não é contínua, aí tem coisa. Em geral a fissura, incisão ou camada superposta é uma maneira de registrar o tempo – o tempo gasto na feitura da pintura e que pode ser entendido como o registro do tempo que passa, simplesmente. É um recurso para suprir uma falta, pois pinturas não são próprias para o registro do tempo, e sim do espaço. Literatura, sim, aponta o tempo – com seu conteúdo cheio de “antes” e “depois” e suas letrinhas, lidas uma depois da outra.
Isso em geral, pois há literaturas mais espaciais do que temporais e pinturas com registros rítmicos e de tempo.
Vânia Barbosa abre a exposição A Cor da palavra na Galeria Almacén, agora em novembro/2006. Ela usa literatura na sua pintura. E a primeira idéia é de que ela faz isso para dar tempo que falta a pintura. Outros já o fizeram.
Não é o caso. Sua construção é bem original. Ela pega o parado na literatura e o temporal na pintura. Ela inverte. Ao fazer isso, brinca com a noção rígida de compartimentação artística.
Seria o caso de doppelbegabung, a palavra alemã para obras feitas por autores que usam uma dupla linguagem. Mas a literatura é de Elisa Lucinda e não dela. Então, a duplicidade seria autoral, mas não é, porque a literatura tem aqui, justamente, um papel de reforço do visual ao vir do jeito que vem. Parada.
Assim:
A poesia é a menos atemporal das literaturas, pois aponta para sua própria estrutura – que é constante. Além disso, nesse caso de Vânia Barbosa, as frases poéticas surgem em graus variados de elevação/incisão na superfície das pinturas. Então, a temporalidade está na maneira como a literatura aparece nas pinturas e não no fato de ser literatura. Além disso, a superfície das pinturas tem rasgos, fendas, sobreposições. Ou seja, as pinturas têm, na sua feitura, o tempo. A literatura, não. O resultado, é a aceitação – bem atual – do indeterminável no lugar da busca redutora por algo fechado e acabado. E isso se dá tanto na obra quanto no posicionamento de autoria, ele também aberto. A autoria não é de Elisa Lucinda e Vânia Barbosa. É de Vânia Barbosa. Mas é uma autoria aberta, múltipla, complexa, com seus processos de interação à mostra, pois ela “diz” o seu processo de criação, onde entrou o impacto dos versos da amiga – uma poeta que escreve cenas, momentos, como quem pinta.
Elvira Vigna, Rio de Janeiro, novembro de 2006
Foi escritora, ilustradora, tradutora e jornalista brasileira